A reclusão para combater a pandemia do coronavírus deu o empurrão que faltava: em meio a um vírus mortal que circula silenciosamente, o que desperta dúvidas sobre o rumo que a cultura deverá tomar em um futuro próximo, o ator, diretor e dramaturgo Vitor Rocha decidiu pôr em prática um projeto que vinha rascunhando: escrever o roteiro de um filme que se chamará Sobre Todas as Coisas.
Trata-se de um trabalho colaborativo e caseiro, uma vez que as pessoas não estão deixando suas casas. Assim, a partir de um roteiro já definido, artistas convidados preparam vídeos que serão enviados a Rocha, que fará a costura final. O ponto de partida é o momento vivido por um rapaz isolado em quarentena e que, por não poder sair de casa, passa a questionar o sentido da vida em busca de novas ressignificações, criando uma lista de palavras intraduzíveis e buscando dar sentido a elas.
“Na verdade, a ideia é antiga, mas acredito que se encaixa perfeitamente no momento atual”, conta ele que, aos 22 anos, já ostenta uma carreira com vários sucessos e prêmios, especialmente no teatro musical. “Pouco antes de prestar vestibular, eu estava com muitas dúvidas e questionamentos (o que é natural nessa fase) sobre qual profissão seguir, onde conseguiria morar. Acabei escrevendo uma série de crônicas que traduziam esse momento e intitulei Sobre Todas as Coisas.”
O tempo é outro, mas a angústia é semelhante, o que Rocha constatou ao recuperar o caderno com as crônicas. “Neste ano, eu lançaria um filme, estrearia nova peça e voltaria em cartaz com outra, mas tudo ficou suspenso a partir do coronavírus”, explica ele, que, como muitos de seus pares, teme pelos caminhos de recuperação da arte. Afinal, quando o mundo retomar suas atividades, acredita-se que o consumo da cultura seja um dos últimos a voltar à normalidade. “Fomos os primeiros a parar, com o fechamento de teatros e cinemas, e poderemos ser os últimos a voltar.”
Para impedir que o sentimento de derrota predominasse, Vitor Rocha deu nova feição a um projeto antigo, para que se transformasse no roteiro de um filme a ser feito coletivamente, em vários pontos desta e de outras cidades. A primeira novidade foi modificar o personagem principal, Leopoldo – se antes precisava ficar isolado por conta de uma doença terminal, acometido por um vírus fictício, mas cuja denominação científica foi até inventada por Rocha, agora o rapaz cumpre quarentena na prevenção contra o coronavírus.
“Leopoldo vive trancado em casa e, como acha que pode morrer, decide escrever um diário de bordo para o caso de alienígenas chegarem à Terra e não encontrarem nenhum ser humano vivo”, conta Rocha. “Essa atitude reflete suas dúvidas em relação à doença.”
Enquanto escrevia, Vitor Rocha foi se lembrando de palavras existentes em todos os idiomas e que são, de alguma forma, literalmente intraduzíveis – apenas o sentido é compreensível. Termos como cafuné e desbunde, para se ficar nas brasileiras. “Comecei a pesquisar na internet e formei uma lista considerável”, explica Rocha, que, na sua luta pessoal em busca de novos significados para a vida futura, decidiu que isso poderia se espalhar e ajudar, quem sabe?, mais pessoas.
Assim, Leopoldo seleciona diversas palavras, mesmo em outros idiomas, e as espalha para artistas de diversas partes do mundo, formando uma corrente. “A vida contagia”, acredita Rocha, que convidou 100 amigos para que cada um oferecesse, nas imagens de um curto vídeo, o seu entendimento daquela tradução para contar a mesma história. “Pedi para que filmassem de sua janela.”
Claro que, a fim de evitar que o resultasse se transformasse em uma torre de babel, Rocha determinou tópicos (15, para ser exato) que estipulam um ponto de vista. E, como já começou a receber alguns trabalhos, ele reafirma uma certeza que representa a essência da arte cinematográfica: a edição é que vai dar o tom do espetáculo. “Percebi, nos vídeos que já chegaram, algumas provocações, sobre vida e morte”, comenta. “Vamos criar um efeito em cadeia, que vai unir a minha interpretação e a dessas pessoas.”
Para ter um fio de história, Vitor Rocha criou cinco personagens que serão os condutores. “Eles vão tocar a trama, criando uma vizinhança”, conta ele, que já fez alguns convites como para os atores Felipe Hintze, Leticia Soares, Marisol Marcondes e Matheus Ribeiro. Esse novo relacionamento, aliás, se espelha na própria rotina de Rocha que, mesmo tendo pouco contato com os vizinhos no prédio onde mora, acabou fazendo compras para uma pessoa que não conhecia.
Ao sair, deparou-se com ruas vazias. “Comecei a pensar nos destinos que não se cruzariam, nas pessoas que não vão se conhecer pessoalmente e se apaixonar”, refletiu ele, que, com seu filme, pretende oferecer o retrato de um momento em que a vida pareceu ficar suspensa, em que uma revisão de crenças e valores tornou-se necessária e, principalmente, em que o outro passou a conquistar um espaço essencial na rotina das pessoas. “Se conseguirmos entender um pouco o que foi esse confinamento por meio desse filme, terá sido uma vitória.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.