*Por Vitor Vogas
O Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES) confirmou, nesta quarta-feira (3), por unanimidade, a condenação do deputado federal Gilvan da Federal (PL) pelo crime de violência política de gênero, praticado contra a deputada estadual Camila Valadão (PSol). Com isso, conforme vários especialistas em Direito Eleitoral consultados pela coluna, o deputado corre o risco de passar a ser considerado inelegível, à luz da Lei da Ficha Limpa.
Em março deste ano, o deputado bolsonarista foi condenado em primeiro grau, pela Justiça Eleitoral, a cumprir um ano, quatro meses e 15 dias de prisão, em regime aberto, além de pagar multa de R$ 10 mil à deputada do PSol, a título de reparação por danos morais, em ação penal eleitoral movida contra ele pelo Ministério Público Estadual (MPES) e pela própria Camila Valadão. A decisão foi assinada pelo juiz Leonardo Alvarenga da Fonseca, da 52ª Zona Eleitoral de Vitória.
No dia 1º de dezembro, o Pleno do TRE-ES começou a analisar recurso criminal eleitoral apresentado por Gilvan a fim de reverter a decisão. A relatora do recurso na Corte foi a desembargadora Janete Vargas Simões, vice-presidente do TRE-ES e futura presidente do Tribunal de Justiça do Estado (TJES) – ela toma posse na próxima quinta-feira (11).
Janete votou pela manutenção da condenação por violência política de gênero, mas acolheu parcialmente o recurso do deputado. Ela atendeu ao pedido de “suspensão condicional da pena”. Isso significa que Gilvan fica tecnicamente condenado (e isto constará em sua ficha), mas a aplicação da pena privativa de liberdade será suspensa – ou seja, ele não será preso, em qualquer tipo de regime. Nesse caso, caberá ao juízo de primeiro grau substituir a pena de prisão por medidas alternativas à privação da liberdade de ir e vir.
Por outro lado, Gilvan poderá passar a ser considerado inelegível à luz da Lei da Ficha Limpa, por ter sido condenado, por crime eleitoral, em decisão de segunda instância (confirmada por órgão colegiado). Ele poderá recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em nova tentativa de reformar a sentença.
A relatora ainda negou provimento a recurso apresentado pelo Ministério Público Eleitoral, que pedia que Gilvan também fosse condenado pelo crime de injúria racial, e não só por violência política de gênero.
No dia 1º de dezembro, o voto de Janete Vargas Simões foi acompanhado integralmente por outros dois membros do Pleno (formado por sete julgadores): a revisora, Isabella Rossi Naumann, e o juiz Marco Antônio de Souza. Em seguida, Adriano Sant’Anna Pedra, representante da advocacia no tribunal, pediu vista para analisar melhor o processo, suspendendo, assim, o julgamento.
Nesta terça-feira (9), Sant’Anna Pedra apresentou seu voto. E acompanhou integralmente o posicionamento da relatora.
“A análise do conjunto fático probatório demonstra com clareza que as condutas praticadas pelo réu ultrapassam os limites da crítica política, adentrando o espaço do constrangimento direcionado à então vereadora em razão da sua condição de mulher”, opinou Sant’Anna Pedra.
Na sequência, o quinto julgador, juiz Hélio João Pepe de Moraes, também acompanhou na íntegra o voto da relatora.
O sexto a julgar foi o juiz Américo Bedê Freire Júnior. Ele foi o único a discordar em parte da relatora, mas no sentido de dar um voto mais rigoroso. “Pela gravidade dos atos reconhecidos pela Corte, peço venia para divergir e manter integralmente a sentença, sem a concessão do benefício da surcis (a suspensão da condenação)”.
Concluindo o julgamento e o resultado unânime, o presidente da Corte, desembargador Dair José Bregunce, acompanhou integralmente a relatora.
Assim, por 7 a 0, Gilvan foi condenado em segundo grau por violência política de gênero.
O que diz a lei
A Lei de Inelegibilidade (1990), alterada pela Lei da Ficha Limpa, diz que são inelegíveis, para qualquer cargo, os que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a referida condenação até o transcurso do prazo de 8 anos, pelos crimes eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade.
Por que Gilvan é réu nesse processo?
Os atos que levaram à condenação de Gilvan foram cometidos entre o fim de novembro e o início de dezembro de 2021, quando ele e Camila Valadão eram vereadores de Vitória. Os dois episódios, com repercussão nacional, ocorreram no plenário da Câmara Municipal.
O primeiro deles ocorreu no fim de novembro, um dia após uma sessão solene promovida por Camila para marcar o Dia da Consciência Negra (20 de novembro). Após literalmente ter desinfetado a tribuna com um produto de limpeza, Gilvan mandou que Camila calasse a boca e ainda a chamou de “satanista”.
No segundo e mais grave episódio, no dia 1º de dezembro, Camila tentou promover em plenário uma discussão sobre as condições de trabalho do magistério de Vitória, com representantes do sindicato da categoria. Dentro do plenário, Gilvan a chamou por termos como “assassina de bebê” e “assassina de criança”, além de, mais uma vez, tê-la mandado calar a boca, conforme amplamente filmado e divulgado nas redes sociais.
Segundo o advogado de Camila, Saulo Salvador, após os episódios, a então vereadora precisou abrir mão de uma assessora importante em sua equipe de gabinete, especialista em políticas de gênero. No lugar dela, escalou um segurança.
“Pela divisão das vagas, ela só era membro de uma comissão permanente da Câmara de Vitória: era a presidente da Comissão de Direitos Humanos. Gilvan era o vice-presidente. As reuniões eram de manhã, em horário de pouco movimento na Casa. Ela não tinha segurança para participar da única comissão que compunha, por medo, por fundado medo e receio, por temor justo de que algo pior acontecesse”, afirmou o advogado, em sua sustentação oral durante o julgamento do recurso no TRE-ES.
“Não foram poucas as pessoas que lhe alertaram, é claro, guardadas as devidas proporções, lembrando o caso de Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro, também vereadora negra”, completou Salvador. Marielle também era filiada ao PSol.
A decisão de primeiro grau
Em decisão de março, o juiz Leonardo Alvarenga da Fonseca reconheceu que, ao mandar Camila se calar, o parlamentar extrapolou os limites da imunidade parlamentar, usando sua posição para tentar restringir a participação de uma mulher no espaço político.
Na sentença, o magistrado destacou que o objetivo do ex-vereador foi dificultar o exercício do mandato de Camila Valadão, o que se enquadra no crime de violência política de gênero contra mulher candidata ou no exercício do mandato eletivo, previsto no artigo 326-B do Código Eleitoral:
“A prova coletada e examinada autoriza a conclusão de que o réu agiu contra a vítima aproveitando-se da sua condição de mulher, para aterrar, intimidar, subjugar e embaraçar a vítima, interferindo no exercício pleno do seu mandato, o que atende ao conteúdo do tipo objetivo e ao dolo específico previstos no tipo penal”, afirmou Alvarenga.
O juiz destacou ainda que, embora o ambiente político seja propício a debates acalorados, há limites que não podem ser ultrapassados, como fez Gilvan, segundo ele, no caso concreto:
“Mesmo num ambiente em que a liberdade de expressão, para garantir o embate de ideias, admite elastério nas palavras e impõe tolerância redobrada, em que até palavras de baixo calão se aceitam e os limites da boa educação já tenham sido há muito ultrapassados, de forma alguma é lícito a um parlamentar mandar outro calar a boca. Esta manifestação é incomportável no conceito de liberdade de expressão”, lecionou o juiz.
Os primeiros recursos do réu
Ainda no primeiro grau, antes de recorrer ao TRE-ES, a defesa de Gilvan protocolou embargos de declaração contra a decisão do juiz Leonardo Alvarenga da Fonseca, julgados pelo próprio, alegando contradição, omissão e erro material.
Gilvan argumentou que, na realidade, teria havido imunidade parlamentar material, e não crime. E pediu a conversão da pena privativa de liberdade em medidas alternativas, restritivas de direitos.
O Ministério Público Eleitoral posicionou-se contra a substituição da pena de prisão em regime aberto por pena restritiva de direitos. Alegou que a sentença encontrou apoio na jurisprudência e que “[…] a violência é elemento constitutivo do tipo penal, configurada, no presente caso, pelo núcleo ‘constranger’ através de menosprezo à condição de mulher”. Para o órgão ministerial, o caso configura “clara violência moral e psicológica”.
O juiz da 52ª Zona Eleitoral de Vitória fez ajustes técnicos na redação da sua sentença, mas manteve o teor da decisão, em maio deste ano, negando-se a substituir a pena de prisão.
“Presentes o constrangimento da vítima e seu sofrimento psicológico, e identificados atos materiais do réu para sua perpetração, como largamente tratado na sentença e bem apontado nas contrarrazões ministeriais, impositivo o reconhecimento da violência política como espécie de violência de gênero”, registrou o autor da decisão.
“Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”
Ao rejeitar o pedido de Gilvan, o juiz Leonardo Alvarenga da Fonseca destacou outro ponto fundamental para embasar sua decisão: a regra obrigatória de julgamento imposta pela Resolução nº 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que adota a Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário.
O “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” estabelece expressamente “que magistradas e magistrados julguem com perspectiva de gênero, atentando para as desigualdades que operam no mundo real para alcançarem resultados protetivos e emancipatórios à mulher”. Isso, acrescenta o juiz, “em qualquer quadra da vida social, inclusive a política, elevando as demais formas de violência – além da física – a patamar jurídico capaz de afastar benefícios penais materiais e processuais, a depender do caso concreto” (grifo do juiz).
“Intenso sofrimento psicológico”
O juiz Leonardo Alvarenga da Fonseca também recusou o pedido de Gilvan de suspensão condicional da pena. Ele justificou:
“Aplicando regra de julgamento conforme perspectiva de gênero e exercendo controle de convencionalidade, conforme a Resolução CNJ nº 492/2023 e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, e em razão do réu ter agido com violência de gênero na perpetração do crime e provocado intenso sofrimento psicológico à vítima, considero também incabível a suspensão condicional da pena, […] que se mostra inadequada e insuficiente para atendimento dos efeitos retributivo e preventivo da pena aplicada”.
O recurso do Ministério Público Eleitoral
O MP Eleitoral também apresentou embargos de declaração. Para o órgão, embora a denúncia tenha classificado um dos fatos narrados como injúria qualificada preconceituosa, tais fatos na verdade deveriam ter sido tratados como intolerância religiosa, “situação que deveria ter sido corrigida” pelo juiz de piso. Segundo o MP Eleitoral, o magistrado teria adotado como verdadeiros todos os fatos, mas não anotado a condenação pertinente, devendo esta ser emendada.
O juiz Leonardo Alvarenga da Fonseca não acolheu o recurso do MP Eleitoral.
O recurso de Gilvan ao TRE-ES
Gilvan, então, recorreu ao TRE-ES, pedindo a anulação da condenação por violência política de gênero e a suspensão condicional da pena.
As advogadas de Gilvan chegaram a pedir remarcação do julgamento para a segunda quinzena de dezembro, mas o pedido foi negado pela desembargadora Janete Vargas Simões.
Como explicado acima, a relatora acolheu parcialmente o recurso da defesa, mantendo a condenação, mas votando favoravelmente à suspensão condicional da pena de prisão em regime aberto. O voto de Janete foi vitorioso.





