‘Fuga’ abre o É Tudo Verdade

Por Agência Estadão

Filmes do belga Jean-Claude Van Damme foram o ponto de interseção entre o cineasta dinamarquês Jonas Poher Rasmussen e um refugiado afegão cuja história de êxodo, marcada por brutalidade política e homofobia, mas repleta de coragem, virou a animação que abre a 26ª edição do É Tudo Verdade, maior festival de documentários das Américas, nesta quinta-feira, 8.

Laureado em Sundance com o Grande Prêmio do Júri, Fuga (Flee) vai ser exibido online às 21h, na plataforma digital Looke, abrindo uma maratona não presencial sediada no streaming até o dia 18 de abril, composta por 69 filmes egressos de 23 países. A seleção tem o crivo do crítico Amir Labaki, criador e curador do evento, que apostou numa narrativa criativa como seu abre-alas. Animando as humilhações de uma família que sai de Cabul para a Rússia, ainda sob jugo soviético, vivendo sob condições sub-humanas, atrás de dignidade, Rasmussen usa um delicado jogo de cores para reviver a Eurásia dos anos 1980 e 90, recriando ainda a cidade de Vallekilde, na Dinamarca, onde cresceu. Foi lá que o diretor conheceu Amin Nawabi, pseudônimo do mais jovem integrante do tal clã originário do Afeganistão que ele escolheu filmar. Eles ficaram amigos na mocidade, vendo Van Damme desferir seu kickboxing nas telas.

“Conheço Amin há 25 anos. Ele tinha uns 15 quando chegou e aprendeu dinamarquês rápido, o que nos aproximou durante a convivência na escola”, disse Rasmussen, em entrevista por telefone ao Estadão. “Descobrimos algumas coisas em comum em nossa infância. Ele estava vendo os filmes do Van Damme em Cabul e na Rússia dos anos 1990 ao mesmo tempo em que eu estava descobrindo os longas-metragens dele. O que nos diferenciava é que eu estava numa cidadezinha europeia que parecia ter 400 moradores naquele tempo e ele estava fugindo da violência, por conta da prisão de seu pai, indo de um país a outro. E, quando nos encontramos, ele logo assumiu-se gay, abertamente. Mas tinha medo de como sua orientação sexual poderia afetar sua vida, por conta dos traumas que trouxe.”

Cenas de O Grande Dragão Branco (1988) são reinventadas em animação por Rasmussen em Fuga para ilustrar o encanto que Van Damme despertava no imaginário de Amin, não pelos feitos heroicos de seus personagens, mas pelo charme do astro de ação, pilar erótico do despertar sexual de Amin. Enquanto lidava com seu desejo, ainda menino, ele encarou o sumiço de seu pai, por ação do governo afegão, e viveu a mudança abrupta de sua mãe, irmão e irmãs para a Rússia, onde moraram como clandestinos, por falta de documentação, sendo abordados acintosamente pela polícia. A partida dele para a Dinamarca, também por caminhos da clandestinidade, é igualmente bruta, conforme ele conta no documentário, que optou por uma vertente animada a fim de preservar a identidade de Amin. Intelectual de respeito na cena acadêmica escandinava, ele estava prestes a se casar com seu namorado quando aceitou exorcizar seus demônios diante da câmera do amigo de juventude.

“A gente se acostumou a buscar o cinema como entretenimento, como lugar de escapismo, o que torna uma animação baseada em um trauma real algo incomum. Venho de um histórico profissional de documentários feitos para o rádio, no qual registrava depoimentos de pessoas. A ideia inicial com Amin era fazer algo assim. Mas ele tinha medo. E é fácil entender o porquê. A vida juvenil dele toda foi marcada por fugas, em travessias sobre as quais ele nunca falou, mas que eram sempre rondadas por uma hipótese de expulsão, de degredo. Até sua sexualidade entra nesse esquema. Se vocês, no Brasil de Bolsonaro, pensarem que a masculinidade ainda é uma imposição, vão entender o que ele, um menino afegão gay, sentia”, disse Rasmussen, que colheu elogios em sua passagem por Sundance, onde Amin foi dublado por Riz Ahmed, um dos concorrentes ao Oscar de melhor ator deste ano, no páreo com O Som do Silêncio.

No site da revista especializada Deadline, o severo crítico Todd McCarthy foi puro mel ao falar de Amin, comparando-o ao aclamado Valsa com Bashir (2008), de Ari Folman, sobre israelenses traumatizados por batalhas travadas no Líbano, em 1982. McCarthy diz que Rasmussen reafirma com força em Fuga o quanto a animação pode ser usada não apenas para diversão, mas para qualquer propósito.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Veja também

Privacidade

Para melhorar a sua navegação, nós utilizamos Cookies e tecnologias semelhantes. Ao continuar navegando, você concorda com tais condições.