Dada a urgência e a gravidade do tema, o “tarifaço” de Donald Trump sobre produtos brasileiros “roubou a cena” e se sobrepôs a outras pautas no evento oficial protagonizado pelo presidente Lula (PT) em Linhares nesta sexta-feira (11), na primeira aparição do chefe de Estado brasileiro desde a carta enviada a ele pelo presidente norte-americano, na última quarta-feira (9). Mas houve bem mais que isso.
Na cerimônia, Lula fez alguns anúncios e entregas importantes, a começar pelo próprio motivo da solenidade: apresentar os avanços do Novo Acordo Rio Doce e marcar, simbolicamente, o início do pagamento das indenizações às comunidades ribeirinhas atingidas pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG), em novembro de 2015, após quase uma década de espera.
O Acordo Rio Doce contempla 38 municípios de Minas Gerais e 11 do Espírito Santo atingidos pelo desastre ambiental causado pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana, em novembro de 2026. Os 11 municípios capixabas, pertencentes à Bacia do Rio Doce, somam perto de 1,2 milhão de pessoas.
O acordo prevê que a mineradora Vale – uma das proprietárias da Samarco, sua joint venture com a empresa BHP – terá de pagar R$ 170 bilhões para reparação às vítimas do maior desastre ambiental da história do país. Desse total, R$ 49 bilhões são geridos pelo Governo Federal; R$ 15 bilhões, pelo Governo do Espírito Santo. Quase R$ 4 bilhões são destinados ao pagamento de indenizações para 22 mil pescadores que praticavam pesca artesanal no Rio Doce (21 mil deles no Espírito Santo) e 13,5 mil agricultores familiares.
Os pagamentos já começaram a ser realizados pelo Governo Federal e serão diluídos ao longo de quatro anos. Durante os 36 primeiros meses, cada beneficiado receberá 1,5 salário-mínimo (hoje, R$ 2.277,00); nos últimos 12 meses, cada um receberá um salário-mínimo.
O saque mensal será feito por meio de um cartão da Caixa Econômica Federal. A transferência de renda é direta. Durante a cerimônia, Lula entregou cartões do programa a duas pescadoras que representaram as vítimas do crime ambiental, em ato simbólico do início dos pagamentos. “A entrega desse cartão simbólico para vocês hoje é o começo de uma reparação”, disse-lhes o presidente.
Adicionalmente, está em vigor um Programa de Indenização Individual, o qual prevê o pagamento de R$ 35 mil para as pessoas físicas e R$ 95 mil para os agricultores. Já há 300 mil adesões; 102 mil pessoas já receberam o dinheiro.
Além disso, o tempo que os agricultores e pescadores do Rio Doce passaram sem poder trabalhar será contado como tempo de serviço para aposentadoria.
“Temos agora um acordo feito para vocês, por alguém de vocês e que vai cuidar de vocês e não dos interesses dos americanos, porque o Brasil é dos brasileiros”, discursou o advogado-geral da União, Jorge Messias, protagonista da costura do acordo, alfinetando Donald Trump e, principalmente, a família Bolsonaro.
Gás de graça, bikes para entregadores e jornada reduzida
Em seu discurso em Linhares, Lula também mencionou, sem maior detalhamento, alguns planos que pretende apresentar nos próximos meses de seu governo.
Um deles, segundo o presidente, é o lançamento de um programa especificamente voltado para o financiamento de bicicletas elétricas para entregadores – categoria de trabalhadores que, em geral, têm baixa renda.
Outra ideia do governo, segundo o presidente, é o fornecimento gratuito de gás de cozinha para famílias de baixa renda, inscritas no CadÚnico. “Não me conformo que o gás de cozinha sai da Petrobras por R$ 37,00. E a quanto chega pra vocês? R$ 140,00? Nós vamos garantir o gás de graça para as pessoas mais pobres deste país.”
Lula também afirmou que o governo entrará fortemente no debate para acabar com a escala de trabalho 6 por 1 no Brasil.
O presidente informou, ainda, que o Governo Federal lançará, na próxima quinta-feira (17), a seleção de projetos que serão contemplados na nova fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), para obras na área da saúde nos estados e municípios.
Fraude no INSS: devolução para quem foi “roubado” a partir do dia 24
Em abril deste ano, foi revelado o escândalo dos descontos indevidos de benefícios previdenciários no Brasil. As fraudes contra aposentados pelo INSS foram descobertas pela Polícia Federal e custaram o cargo ao então ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT), demitido por Lula no começo de maio.
De acordo com o presidente, o esquema foi perpetrado por uma “quadrilha montada pelo governo passado”. A partir do próximo dia 24, disse Lula, o INSS devolverá cada centavo descontado indevidamente aos cidadãos lesados, com correção monetária.
“Aposentados roubados pela quadrilha montada pelo governo passado, todos que tiveram desconto sem autorização e que foram roubados, a partir do dia 24 deste mês, vão receber tudo o que foi roubado deles, integral e com correção monetária. A partir de hoje, eles têm que entrar em contato com o INSS pra receber.”
Curso de Medicina em São Mateus
A abertura do curso de Medicina no campus da Ufes em São Mateus está autorizada pelo Ministério da Educação (MEC). Em seu discurso no palanque em Linhares, ao lado de Lula, o governador Renato Casagrande (PSB) comentou com o presidente que pediu ao ministro da Educação, Camilo Santana (PT), para inaugurar o curso.
No fim do seu discurso, após o de Casagrande, Lula informou ao público que o chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT) – ali no palanque –, recebeu de Camilo a informação de que o curso de Medicina de São Mateus “está pronto”.
Após o Enem deste ano, a primeira turma deve se matricular no primeiro semestre letivo do ano que vem.
Alfinetadas em Bolsonaro
Chamando Jair Bolsonaro não pelo nome, mas de “aquela coisa que governou o país”, Lula deu várias alfinetadas em seu antecessor na Presidência. “Quantas vezes este país teve um presidente da República que não conversava com os governadores?”
A uma plateia bastante amistosa, o petista propôs o desafio: “Se eu perguntar aqui se vocês se lembram qual é a obra que o ex-presidente da República fez no Espírito Santo, eu duvido que mesmo o cara que votou nele saiba uma obra que ele fez”.
Essa foi a segunda visita de Lula ao Espírito Santo no seu atual governo. Na primeira, em dezembro de 2023, para a inauguração do Contorno do Mestre Álvaro, ele fez exatamente o mesmo desafio retórico à plateia, para dizer que o legado de Bolsonaro é nulo.
Autoelogios
Também não faltaram, na direção oposta, os tradicionais elogios de Lula a si mesmo como governante.
“Duvido que vão encontrar, desde o Marechal Deodoro da Fonseca, um presidente que fez mais no Espírito Santo do que eu. Podem pesquisar. Se encontrar [sic], eu vou pedir desculpas a vocês da próxima vez que eu vier aqui.”
Dona Lindu: “Meu filho, teime!”
Cumprimentando os atingidos pelo desastre de Mariana pela perseverança na luta por reparação, Lula recordou um ensinamento de sua mãe, a falecida Dona Lindu, sempre citada por ele em seus discursos:
“Ela dizia: ‘Meu filho, teime! Não desista de teimar. Quando a gente teima, a gente conquista”.
Lula disse que, nos dois governos anteriores, as negociações das vítimas com a Vale, mediadas pela Fundação Renova, não avançaram em nada. Já seu governo, completou, celebrou o acordo em dois anos e fez a Vale pagar o que devia.
Muitas críticas à Vale
Aliás, sobraram críticas de Lula à Vale, centradas na sua privatização – que vem lá do fim dos anos 1990 – e no presidente passado.
Segundo ele, “a Vale tinha direção muito ruim”, se achava “a toda poderosa” e tinha um presidente que nunca conversou com o Governo Federal.
O presidente disse que, quando era estatal, a Vale era a maior mineradora do mundo, enquanto agora é só a 14ª e, em vez de um comando centralizado, tem um monte de acionistas “só esperando os dividendos”, porque virou “corporation” (palavra inglesa dita por ele com calculado desdém).
“Vocês aprenderam desde cedo que, quando tem muita gente pra cuidar de um cachorro em casa, ele morre de fome, porque um deixa pro outro e ninguém dá comida pra ele. [No governo passado], a Vale era assim”, comparou Lula, usando uma de suas populares metáforas domésticas, que qualquer pessoa sem estudo consegue entender.
Plantar e colher
Em 2025, Lula não vem bem em pesquisas de popularidade dele mesmo e de seu governo, mas mostrou-se otimista com o que reserva o próximo ano, até a sua campanha à reeleição. “Passamos dois anos reconstruindo, um ano plantando… Agora é o momento da colheita. Agora é o momento em que nós vamos anunciar tudo que nós fizemos.”