Feminicídios no Brasil: um recorte racial necessário

O aumento recente dos casos de feminicídios e de violência doméstica contra as mulheres durante esta pandemia revela uma face primitiva e vergonhosa de nossa sociedade. Primitiva porque, muito provavelmente, a violência doméstica e familiar contra a mulher talvez seja uma das formas mais antigas de preconceito e covardia que se tem notícia.

Infelizmente ainda hoje é uma verdadeira chaga mundial que em terras brasileiras encontra respaldo em uma cultura machista e patriarcal.

Sem me aprofundar em discussões teóricas, a cultura patriarcal, significa, na prática, que o homem se enxerga como sujeito único ou predominante de direitos na relação com o gênero feminino.

Se sente autorizado a utilizar-se da violência na relação com sua companheira quando algum interesse seu for contrariado. Quando confunde a figura do parceiro com a de proprietário, senhor absoluto dos destinos do casal. Quando não suporta que o fim do relacionamento se dê por vontade da mulher ou quando ela tem a “coragem” de partir para um novo amor.

A meu ver, esses casos revelam uma incapacidade de algumas pessoas de lidarem com as frustrações da vida. Uma frustração seletiva, é verdade. Pois, diante de séculos de prevalência do machismo na cabeça das pessoas é direcionada sempre contra a mulher.

Em muitos relatos de violência doméstica e familiar contra a mulher, fica evidente que a cada passo da mulher, ainda que tímido, em busca de alguma autonomia, traz consigo uma reação refratária a esse movimento. E aí começam os casos de violência.

Essa seletividade a que me referi acima, nada mais é do que outra marca da mulher como vítima da violência: a covardia. Homens se valem em muitos casos da força física ou do fator surpresa como forma de executar tais atos violentos.

A intolerância com a convivência igualitária e a covardia, para mim, marcam esse tipo de crime.

E são exatamente as situações acima mencionadas que são as principais motivações dos feminicídios.

Tudo isso contribui para naturalização de algo que deveria ser tratado como uma vergonhosa demonstração de nosso atraso na caminhada civilizatória, a saber, os inúmeros casos de mortes de mulheres pelo simples fato de serem mulheres.

Posso exemplificar o caso capixaba, o Estado passou a conviver, a partir de 2010, com uma contínua redução de registros de homicídios dolosos, mas que, em relação às mortes intencionais de mulheres, esse dado só veio apresentar uma melhora apenas recentemente de forma discreta e descontinuada.

Embora seja importante reconhecer o avanço proporcionado pela Lei Maria da Penha, de 2006, e agora, recentemente com a qualificação do feminicídio como crime hediondo, o fato é que o quadro ainda é grave e exige de todos profunda reflexão sobre o papel que cabe a cada um, homem ou mulher, no enfrentamento do problema.

Dito isto, outro dado chama mais a nossa atenção. Embora tenha ocorrido nos últimos uma desaceleração das mortes de mulheres em nosso país, no caso de meninas e mulheres negras os números atestam uma tendência contrária. Os registros estão aumentando.

O mesmo padrão acontece no país. Na década compreendida entre 2003 e 2013 dados apontam um aumento de mais de 50% dos casos de mortes intencionais de mulheres negras. Em sentido contrário, para mulheres brancas os registros diminuíram em quase 10%, segundo o Mapa da Violência de 2015, publicado pela Flacso – Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

Em nosso país, se a mulher for jovem e negra, a chance de ser assassinada é 2,2 vezes maior se comparado à situação da mulher branca.

Chego à constatação simples que, o que vem sendo feito para impactar na redução dos feminicídios não é suficiente para atingir as mulheres negras. O que leva também a considerarmos que estão as mulheres negras em situação de vulnerabilidade ainda mais acentuada que a dramática realidade das mulheres brasileiras.

Fica evidente, portanto, que políticas específicas devem ser concebidas para atender a essa necessária e cruel realidade enfrentada pelas mulheres negras.

Sem esquecer de todas as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar, o alerta deve ser dado:são elas, as negras, as vítimas principais dos crimes de feminicídios.