Vítima do novo coronavírus, morreu aos 87 anos o pesquisador Saulo Pereira de Mello, responsável pela restauração de Limite, de Mário Peixoto (1908-1992), filme considerado uma das obras-primas do cinema brasileiro. Limite é um caso único, tanto na cinematografia brasileira como mundial. Foi, durante muito tempo, uma espécie de “obra secreta”, que poucos haviam visto e alguns duvidavam até mesmo da existência.
Mário Peixoto fez uma exibição pública no Cine Capitolio, em 1931, e depois a cópia parou de circular. A sessão foi tumultuada. Alguns acreditam que o próprio Mário teria comandado as vaias, como forma de promover o filme. Não é impossível. Numa astúcia de divulgação, ele fez circular um artigo elogioso assinado pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein e que depois se comprovou ter saído da pena do próprio Mário. Nota: o artigo é muito bom.
De qualquer forma, o filme parou de ser visto e ganhou a aura mítica de obra-prima perdida. Em seu livro de 1963, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Glauber Rocha dedica um capítulo ao filme (O Mito Limite), atacando-o sem tê-lo visto.
Em 1978, em artigo de jornal, Glauber diz que, por fim, havia visto o filme de Mário Peixoto e mantinha a opinião de 1963: “produto de intelectual burguês decadente”. Em seu jacobinismo revolucionário, Glauber ressalva que “a decadência é bela”, e, assim como Peixoto, também Machado de Assis era decadente. Ou seja, Mário Peixoto, apesar da pecha de burguês, andava em excelente companhia, mesmo no radical julgamento de Glauber Rocha.
Limite foi salvo da destruição total pela devoção de Plinio Süssekind Rocha e Saulo Pereira de Mello. Passou a circular, até mesmo no formato VHS. Mesmo em cópias inadequadas, foi divulgado e voltou-se a falar dessa obra polêmica, para muitos o maior filme do cinema brasileiro em toda a sua história. Assim foi considerado, como melhor filme brasileiro de todos os tempos pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), num ranking de cem títulos.
Salvo do desaparecimento pela devoção de Saulo (que também era diretor do Arquivo Mario Peixoto), Limite hoje pode ser visto em cópia perfeita, que põe em destaque a invenção de Mário e a magnífica fotografia de Edgard Brasil. É essa dança de luz que dá sentido a um filme estranho, sobre náufragos da existência, sobre o limite de todos nós.
Sérgio Machado fez um filme sobre Limite, um making of póstumo, muito bonito, Onde a Terra Acaba (2002).
Saulo é também autor de Limite, livro fundamental sobre a obra-prima de Mário Peixoto, e da coletânea Ensaios sobre Cinema, além de obras ficcionais.