Após o Brasil ter registrado em 2019 a menor taxa de homicídios da década, o número de assassinatos voltou a subir neste primeiro semestre, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados neste domingo, 18. Entre janeiro e junho, o País relatou 25.712 mortes violentas, ou 7,1% a mais em relação ao mesmo período do ano passado, o equivalente a uma vítima a cada dez minutos.
Os dados fazem parte do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e são compilados com base em registros policiais de cada Estado. Para o índice, o Fórum considera a soma de homicídios dolosos (quando há intenção de matar), latrocínios (roubo seguido de morte), lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenção policial – por si só, este último indicador está em escalada desde 2013.
Esta é a primeira vez que o Anuário também divulga estatísticas parciais do ano corrente. Segundo o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum, trata-se de uma “excepcionalidade” que serviria para avaliar o comportamento de indicadores criminais em meio à pandemia de coronavírus. “Os esforços para obter os dados só de 2019 ou já com o primeiro semestre de 2020 eram semelhantes”, diz.
Se for feita a comparação tradicional, considerando apenas os anos já encerrados, o Brasil somou 47.773 assassinatos ao longo de 2019, o que representa o segundo recuo consecutivo do índice. De acordo com o relatório, a queda de 17,7% também foi a maior registrada desde 2011. Por sua vez, a taxa de homicídios havia chegado a 22,7 casos por 100 mil habitantes, o melhor resultado da década.
Já mais recentemente, no primeiro semestre de 2020, as mortes violentas demonstraram comportamento contrário e aumentaram em 21 das 27 unidades federativas – incluindo São Paulo, historicamente responsável pela menor taxa. Para comparar, os casos só haviam subido em Rondônia em 2019.
Segundo o Fórum, a tendência se inverteu a partir de setembro de 2019 e o País acumulou nove meses de alta consecutivas. Esse cenário faz pesquisadores questionarem o quanto políticas de proteção à vida, de fato, foram implementadas. “Talvez a gente tenha perdido uma das maiores oportunidades das últimas três décadas”, afirma o diretor-presidente do Fórum. “Enquanto o indicador caía, ninguém se dedicou a entender o que estava dando certo e precisava ser estimulado.”
Proporcionalmente, o Ceará tem o pior resultado deste ano, com 2.340 assassinatos de janeiro a junho, e serve para ilustrar a mudança constatada. O mesmo Estado havia sido recordista de queda de homicídios em 2019. Especialistas ligam o fato à crise de segurança pública vivenciada com a greve da Polícia Militar em fevereiro. Unidades que também registraram atrito entre as forças de segurança e governos locais aparecem na sequência da tabela do Fórum. Entre elas, estão Paraíba (19,2%), Maranhão (18,5%) e Espírito Santo (18,5%). Procurado, o Estado do Ceará destacou que em setembro houve 252 registros, o menor índice de 2020.
A família de Rômulo Felix Moura, de 29 anos, assassinado no dia 24 de março em Fortaleza, é uma das tantas que ainda aguardam respostas. Um familiar de Rômulo, que pediu para não ser identificado, conta que o jovem mecânico trabalhava na calçada de casa, consertando um caminhão, às 22 horas, quando dois homens em uma moto, vestidos de preto, se aproximaram e atiraram. O caso continua sem solução.
Outra possível explicação para o incremento da violência no País é a mudança no tabuleiro de disputas territoriais do crime organizado. Com a quarentena, lideranças isoladas em presídios de segurança máxima e novos chefes nas ruas, o tráfico foi obrigado a se reinventar, segundo os especialistas. Em meio à menor oferta de voos, por exemplo, brigas por rotas de transporte da droga ou até por pontos de venda mais perto das casas podem ter afetado a curva de homicídios.
Entre os fatores gerais, Lima cita, ainda, queda de investimentos da União e a falta de articulação nacional em políticas de segurança pública. “O Brasil tem tradição de insistir no modelo baseado em dimensões operacionais, de mais armas, viaturas e recursos táticos – e menos planejamento e estratégia”, diz. “A dinâmica do crime mudou, mas o nosso comportamento continuou igual.”
Segundo o relatório, os gastos efetivos do governo federal com a segurança caíram 3,8% em relação às despesas de 2018, com o total de R$ 11,3 bilhões empregados. Já a participação da União na área foi de 11,9%, enquanto os Estados representaram 81,4% e os municípios, 6,7%. “O discurso de prioridade política não foi acompanhado de medidas de melhoria da qualidade do gasto e/ou do aumento de despesas com segurança pública no âmbito federal”, diz.
Homicídios comuns e a letalidade policial, que tiveram aumentos individuais de 8,3% e 6% no primeiro semestre, puxam os assassinatos do País para cima. Por sua vez, os índices de latrocínio e lesão corporal seguida de morte caíram 13,6% e 7,9%, respectivamente, mas juntos só representam 4,2% das vítimas de violência. Chama atenção dos pesquisadores que a piora nas estatísticas foi percebida mesmo com a redução de outros crimes durante o isolamento social, a exemplo dos roubos a transeuntes (34%), a residências (16%) ou de veículos (22,5%).
Na contramão nacional, seis unidades conseguiram diminuir os casos – o principal recuo foi no Pará, palco de conflitos de facções e até de massacre em presídio em 2019, que agora reduziu as mortes em 25,1%. “O grande desafio é manter esses patamares de 2020, certamente pelo contexto da pandemia, que foi favorável à redução de determinados crimes”, diz Brenno Miranda, presidente da Comissão de Segurança Pública da seção local da Ordem dos Advogados (OAB-PA).
Perfil
Os dados de 2019 confirmam que a maior parte das vítimas é homem, negro e jovem. Para cada mulher branca (grupo de menor risco) morta no ano passado, foram assassinados 22 homens negros (principal grupo de risco). Por faixa etária, o grupo mais afetado é o até 29 anos, com 51,5%. Os negros correspondem a 74,4% dos mortos. E as armas de fogo foram usadas em 72,5% dos assassinatos – motivo pelo qual o Fórum aponta que é preciso aperfeiçoar o controle de acesso.
Letalidade policial
As mortes cometidas em ações policiais chegaram a 6.357 em 2019 e atingiram o maior patamar desde 2013, quando o indicador passou a ser monitorado. A letalidade policial já representa 13,3% do total de mortes violentas, ante 10,7% em 2018.
Em 15 Estados, a polícia matou mais suspeitos, com destaque para Rio e São Paulo, que notificaram respectivamente 1.810 e 867 ocorrências. Juntos, respondem por 42% do número absoluto. Com casos concentrados na região da capital e crescimento de 152,5%, entretanto, o Amapá ultrapassou o Rio no critério por taxa de letalidade das polícias e atingiu a marca de 14,3 casos por 100 mil habitantes.
Os dados do primeiro semestre de 2020, que também foram compilados, confirmam a tendência de alta. Neste ano, já houve registro de 3.181 vítimas de intervenções entre janeiro e junho – incremento de 6% comparado com o mesmo período anterior. Mais uma vez, Rio e São Paulo lideram, com 775 e 514 ocorrências registradas.
Os governos foram procurados. O do Rio destacou que os dados do ISP indicam queda nos crimes violentos letais intencionais “de 12% em relação ao acumulado do ano e de 18% em relação a agosto de 2019, o menor número para o acumulado do ano e para o mês desde o início da série histórica, em 1999”. O governo também alega queda no índice de letalidade por intervenção de agentes do Estado. “Na comparação com o ano passado, o indicador apresentou queda de 30% em relação ao acumulado do ano e de 71% em relação a agosto.”
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, por sua vez, afirmou que “não comenta pesquisas cuja metodologia desconhece”. Mas também destacou dados. “O número de pessoas mortas em confronto com policiais militares em serviço vem caindo de maneira consistente no Estado de São Paulo desde o mês de junho, quando foi registrada redução de 20,3% no indicador, em comparação com o ano de 2019. Considerando-se os meses de junho, julho e agosto, a redução chega a 22,7%, com 176 mortes registradas em 2019, ante 136 neste ano.”
“Polícias de vários Estados foram batendo recorde mesmo com a queda abrupta de todos os crimes contra o patrimônio, cidades em quarentena e comércios fechados”, diz a diretora executiva do Fórum, Samira Bueno. “Isso é estimulado por uma retórica de que só o confronto controla a violência.”
Em contrapartida, pesquisadores também identificaram que o uso da força letal das polícias é “fenômeno raro” em alguns Estados, a exemplo de Distrito Federal (com taxa de 0,3 por 100 mil), Minas Gerais (0,5) e Paraíba (0,6), além de Pernambuco e Espírito Santo (0,8). No Brasil, a média é de 3 por 100 mil. “Não é um problema de todas as unidades”, diz Samira. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.